Touradas: O Sofrimento Invisível
As touradas são uma tradição que perdura há séculos em Espanha e Portugal. No entanto, consideramos que se trata de um espectáculo desactualizado e cruel que infringe os direitos mais básicos dos animais e que não deveria continuar a ser permitido. Subsídios significativos – incluindo alguns provenientes da União Europeia – mantêm a indústria das touradas artificialmente activa. Contudo, cresce o número de pessoas em Portugal que se opõem a esta prática – recentemente, participámos num protesto junto a uma praça de touros em Vila Nova de Milfontes. Aqui apresentamos um relato com alguns antecedentes.
por Barbara Kovats, 24.10.2024
O partido político PAN (Pessoas – Animais – Natureza) em Portugal lançou uma iniciativa legislativa cidadã com o objectivo de abolir as touradas, apelando ao governo para se posicionar “do lado certo da história”. Segundo o partido, “os maus-tratos aos animais não podem continuar a ser permitidos.”
A iniciativa, intitulada “Fim à tauromaquia, por favor”, foi lançada durante um evento em frente à Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa. O objectivo é “encerrar esta actividade anacrónica que já não tem lugar no século XXI”, afirmou Inês de Sousa Real, líder do partido. Na declaração que acompanha a iniciativa, sublinha-se:
As touradas são permitidas em Portugal, apesar das evidências científicas actuais que demonstram que os animais, tal como os seres humanos, também são capazes de sentir emoções e, por isso, de sofrer.
Isto entra em conflito com a Lei do Bem-Estar Animal, que proíbe “qualquer violência injustificada contra os animais, incluindo actos que causem morte desnecessária, sofrimento cruel e prolongado ou ferimentos graves.
Este princípio contradiz o ritual das touradas, onde os animais são gradualmente atacados com vários tipos de armas, resultando em dor, ferimentos profundos e hemorragias até quase à morte.
Em Portugal, as touradas que resultavam na morte dos touros foram proibidas em 1928. No entanto, em Agosto de 2002, essa proibição foi levantada para a vila de Barrancos, localizada na fronteira com Espanha.
No contexto do curso “Construir Comunidade como Chave para o Trabalho pela Paz”, que decorreu em Tamera de 5 de Agosto a 1 de Setembro, unimo-nos ao protesto contra as touradas reintroduzidas em Vila Nova de Milfontes.
O protesto ocorreu paralelamente ao segundo evento de tourada – após nove anos sem tais eventos – na estância turística costeira. O que tornou o evento singular foi uma outra camada de complexidade moral:
Seis semanas antes, uma explosão num apartamento próximo de Milfontes resultou na morte de uma mãe, um pai e uma filha. Um rapaz de 13 anos sobreviveu e agora vive com a sua tia. Ele adora animais. Os organizadores anunciaram que esta tourada seria um evento de caridade, com as receitas a serem entregues ao rapaz para lhe proporcionar um apoio financeiro.
É provável que muitas pessoas tenham comparecido preocupadas com o futuro da criança. O rapaz também foi convidado a participar. Soube-se, entretanto, que ele relutava em ir porque não queria ver os animais a sofrer. No entanto, acabou por comparecer, pois o dinheiro seria entregue publicamente à sua tia e a ele durante o evento.
O que se passará na mente de um jovem nessa situação? Que tipo de ruptura emocional será esta, especialmente depois do trauma que acabara de viver?
Reflectimos sobre como queríamos participar. Como podemos tomar uma posição e apoiar esta iniciativa? Que atitude devemos adoptar para não promover o ódio e a oposição, mas sim a verdadeira compaixão, mesmo em relação a posições com as quais não concordamos? Como podemos manter-nos firmes no nosso compromisso com a vida?
Dividimo-nos em dois grupos: um grupo sentiu que a melhor forma de ajudar seria estar presente no local, e outro grupo decidiu permanecer em Tamera para apoiar a acção através de meditação e oração. Esta combinação de acção política e consciência espiritual tornou-se uma base para a nossa actuação política em geral.
Isso encoraja-nos a manter uma consciência interior de que estamos do lado da vida – e quando a vida vence, não há vencidos. É uma forma de transcender a habitual mentalidade de oposição, sem negar a nossa própria posição.
A cena no local era marcante. A arena e as áreas delimitadas onde, como soubemos mais tarde, se encontravam os touros e os cavalos. Nós, os manifestantes, alinhados dos dois lados da estrada que levava à arena. Nos carros, os visitantes da tourada; a arena tinha capacidade para 2.500 pessoas.
Barbara Kovats na manifestação contra as touradas, com a polícia ao fundo. Foto: Henry Sperling
Ao lado dos manifestantes, havia um pequeno palco onde músicos tocavam em apoio ao protesto. Atrás do palco, uma área iluminada com luzes brilhantes albergava carros de choque e outras atracções típicas de feira. Havia gelados, cerveja e passeios descontraídos numa noite fresca após um dia quente. E, ao lado disso, a crueldade animal – e um protesto que, face ao cenário, parecia diminuto.
Era uma representação condensada da sociedade actual e dos seus hábitos de consumo, em contraste com a miséria, exploração e destruição que subsistem do outro lado. Manter o foco neste cenário requer uma disciplina interior, face a tantas distracções, luzes, ruídos – e uma mistura de agitação, tristeza e indignação internas.
Alguns dos cerca de 80 manifestantes em Milfontes. Foto: Henry Sperling
É importante manter a lucidez. Olha com compaixão para os rostos que – como tantos de nós em momentos diferentes – reagem com indiferença. Pensa na situação dos cavalos do outro lado da arena, com as orelhas cobertas, os olhos vendados, apertados de forma dolorosa, frequentemente esporeados até sangrarem – não há outra forma senão a força para que estes animais, naturalmente inclinados a fugir, entrem numa situação como esta.
Agora conecta-te mentalmente com os nove touros que aguardam no camião, nas suas caixas, voltados para a entrada da arena. Pensa nos jovens que irão enfrentar os touros a cavalo, que irão ferir os animais até que estes não consigam mais segurar a cabeça. O touro será ferido e arrastado para fora da arena a sangrar, muitas vezes permanecendo assim durante dias, até ser novamente transportado para o matadouro.
Hoje é domingo. Os animais feridos provavelmente estão lá desde sexta-feira à noite e devem ser levados ao matadouro amanhã. Como grupo, mantemos uma ligação compassiva.
Cartazes dos manifestantes na manifestação contra as touradas em Milfontes. Foto: Henry Sperling
O que acontece com os animais após o evento?
Os touros que estão gravemente feridos têm as farpas removidas sem qualquer anestesia. As suas feridas são frequentemente tratadas com sal e vinagre para estancar o sangramento. Raramente recebem cuidados médicos, excepto quando são destinados à reprodução. Os restantes animais aguardam alguns dias até serem recolhidos pelo matadouro. Este procedimento foi-nos descrito por um ex-forcado.
Quase no final da nossa acção, por volta das 23h, e com a tourada provavelmente a prolongar-se até à meia-noite, perguntámos se podíamos cantar perto dos touros que ainda esperavam. A polícia recusou. Decidimos então regressar a casa, caminhando lentamente ao redor da arena enquanto cantávamos. Cantamos pelos touros, pelos cavalos, por Francisco, o rapaz, por todos os envolvidos.
A canção que entoamos é inspirada no ritual havaiano de perdão Ho’oponopono, que significa algo como “corrigir um erro” ou “reparar uma falha” e tem uma longa tradição na cultura havaiana:
Sinto muito
Por favor, perdoa-me
Eu amo-te
e obrigado.
Caminhamos lentamente pela arena. Lá em cima, vislumbramos as silhuetas das pessoas sentadas nas últimas filas; um rapaz vira-se e leva o dedo indicador aos lábios, murmurando “shh!” — quem sabe, talvez o nosso canto tenha sido ouvido, ainda que brevemente, dentro da arena.
Participar nesta campanha foi uma experiência de compromisso com a vida — e um exercício intenso sobre o que é necessário para alcançar esse objectivo. Sentimos gratidão por não estarmos sozinhos no evento, por podermos apoiar-nos mutuamente e por saber que havia um grupo em casa a sustentar o momento. Continuamos a defender a vida.
Grupo de participantes de “Construir a comunidade como chave para o trabalho de paz” em Milfontes durante a manifestação. Foto: Henry Sperling
Subsídios mantêm a indústria das touradas viva
Com o interesse nas touradas em declínio, este espectáculo já não se sustenta apenas com as receitas de bilheteira. Subsídios substanciais – incluindo da União Europeia – mantêm a indústria das touradas artificialmente activa. Os agricultores que criam touros para as touradas recebem subsídios agrícolas da UE para as suas propriedades. Isto implica que o dinheiro dos contribuintes europeus é canalizado para a indústria das touradas.
De acordo com um deputado espanhol, cerca de 130 milhões de euros são atribuídos anualmente pela UE aos criadores de touros de lide em Espanha.
Segundo uma estimativa da “Plataforma Basta de Touradas”, quase 17 milhões de euros de fundos públicos são gastos todos os anos em actividades relacionadas com touradas em Portugal. Este montante seria suficiente para cobrir os custos operacionais do projecto de pesquisa pela paz em Tamera durante aproximadamente 15 anos. É impressionante pensar nas diferentes escalas em que a matriz da violência e o estudo da paz ainda operam.
O professor Menezes Cordeiro comenta:
Existe um fundamento ético-humanista que abrange todas as formas de vida, especialmente a vida senciente. Nós, seres humanos, sabemos que os animais podem sofrer; sabemos como infligir sofrimento e como evitá-lo. A sabedoria traz consigo responsabilidade.