“Um mundo livre de secas e enchentes?”
Rajendra Singh, o “homem da água” da Índia, no Brasil para catalisar a regeneração ecológica
Martin Winiecki, 28 de setembro de 2023
Desde a década de 1980, um movimento ecológico de base maciça e ainda pouco conhecido está em andamento na Índia. Em Rajasthan, o estado mais seco do país, as comunidades locais regeneram 10.600 quilômetros quadrados de deserto e semideserto. A chave para esses eventos improváveis foi o que Rajendra Singh, o visionário iniciador desse movimento, descreve como “gestão descentralizada e comunitária da água”.
O Dr. Rajendra Singh, também conhecido como “Gandhi da Água” ou o “Homem da Água da Índia”, esteve em São Paulo esta semana para falar sobre seu trabalho e apoiar os esforços de regeneração ecológica no Brasil.
Aos 20 e poucos anos, Singh trabalhava como médico ayurvédico na zona rural do Rajastão quando os anciãos da aldeia o desafiaram a deixar o trabalho médico de lado e, em vez disso, lidar com o estresse hídrico extremo que a região estava sofrendo. Um desses anciãos lhe ensinou sobre os métodos tradicionais indígenas de conservação de água, que Singh logo colocou em prática. Com suas próprias mãos, ele construiu o chamado “johad”, uma pequena estrutura semelhante a um lago não vedado que retém a preciosa água do inverno e permite que ela seja filtrada para o aquífero. Embora as pessoas inicialmente tenham rido dele, para a surpresa de muitos, os níveis de água subterrânea nos poços locais subiram vários metros logo após as chuvas seguintes. À medida que a notícia se espalhava e cada vez mais pessoas se envolviam, Singh fundou a ONG Tarun Bharat Sangh para ampliar seu trabalho. Ao mobilizar as comunidades locais, sua equipe, que crescia rapidamente, construiu centenas e, por fim, milhares dessas estruturas descentralizadas de pequena e média escala e criou uma cobertura vegetal diversificada. O movimento alcançou o que parecia impossível: ao recarregar aquíferos e construir vegetação, nascentes, riachos e rios começaram a fluir novamente e, com a água, a vida voltou à região. 14 rios que haviam secado agora transportam água durante todo o ano, mesmo em períodos de seca. Hoje, centenas de milhares de pessoas vivem de forma autossuficiente nessas terras. Seu trabalho foi homenageado com vários prêmios, entre eles o Prêmio da Água de Estocolmo, e o The Guardian nomeou Singh como uma das “50 pessoas que poderiam salvar o planeta“.
Levando sua experiência para o cenário global, Singh criou no ano passado a “People’s World Commission on Drought & Flood” (“Comissão Mundial dos Povos sobre Secas e Enchentes”). Agora ele está viajando pelo mundo para encontrar pessoas com a mesma visão e dar início a um movimento internacional.
Durante sua estada na semana passada, o sudeste do Brasil registrou temperaturas tão altas como não se via há 80 anos, enquanto grandes enchentes no Rio Grande do Sul forçaram as pessoas a evacuar suas casas e causaram danos graves.
Singh vê esses eventos climáticos extremos não apenas como sintomas do efeito estufa, mas também de ciclos hídricos interrompidos. Para ele, “água é clima e clima é água”. Singh explica que as plantas e as florestas são essenciais para animar os ciclos da água na terra. Quando a luz do sol encontra uma vegetação saudável, as plantas evaporam a água e a liberam na forma de vapor, que, além de resfriar a atmosfera, funciona como uma bomba biótica que atrai as nuvens do mar para a terra. Em palavras mais simples, a vegetação saudável gera chuva.
No entanto, quando a vegetação e os solos são degradados pelo desmatamento, monocultura, drenagem e urbanização, essa função natural deixa de existir. Quando a luz do sol atinge o solo descoberto, ela tem o efeito oposto: libera calor sensível. Quando isso acontece em grandes áreas, o aumento do calor geralmente impede que as nuvens que se acumulam sobre o mar cheguem ao interior. Com frequência, muito vapor de água precisa se acumular sobre o mar antes de chegar à terra, aumentando o número e a intensidade das chuvas torrenciais. Sem vegetação e com solos erodidos, a água da chuva que não consegue mais se filtrar no solo escorre, causando inundações durante precipitações fortes e secas durante períodos de estiagem.
A seca e as enchentes já estão afetando 40% da área terrestre do mundo e bilhões de pessoas. Singh adverte que, se continuarmos em nossa trajetória atual de degradação ecológica, estaremos caminhando para algo muito pior: guerras pela água devastadoras com centenas de milhões de refugiados do clima.
No entanto, como ele demonstrou, esse cenário está longe de ser inevitável. O Tarun Bharat Sangh demonstrou que as secas e as enchentes não são principalmente uma questão de quanta chuva cai, mas de se a chuva que cai pode ou não penetrar no solo. Graças à retenção descentralizada da água da chuva, as pessoas e a natureza em Rajasthan agora desfrutam de autonomia de água regenerativa, mesmo em áreas com apenas 250 mm de precipitação anual. Como essas medidas foram aplicadas a grandes áreas contíguas, o clima regional começou a mudar para melhor: As chuvas aumentaram e se tornaram mais equilibradas novamente, e as temperaturas médias caíram de 2 a 3 graus Celsius.
E a restauração ecológica também deu início a transformações sociais de longo alcance. Em algumas comunidades onde antes havia muita violência, crime e fuga urbana, as comunidades locais agora vivem juntas pacificamente porque há segurança para seus meios de subsistência e porque as comunidades locais se organizaram em “parlamentos fluviais” para preservar a água como um bem comum para o benefício de todos.
Ao enfrentar os eventos climáticos extremos e as perturbações climáticas em todo o mundo, Singh espera aplicar as lições que aprendeu na Índia para criar um movimento global de restauração do ecossistema e do clima.
A meta da comissão que ele está iniciando é, sem dúvida, ambiciosa: implementar a gestão descentralizada e comunitária da água em escalas médias e grandes em 100 biorregiões ao redor do mundo nos próximos 10 anos. Para chegar lá, vários níveis de trabalho deverão ser abordados paralelamente: intervenção ecológica em locais de modelos relevantes, treinamento para engenheiros hídricos e paisagistas, conscientização sobre a importância da água para o clima, conexão com aqueles que já estão envolvidos nesse trabalho e lobby para mudanças nas leis. A estrutura da comissão é descentralizada: Em vez de um escritório global que aconselha o que deve acontecer em cada parte do mundo, as pessoas se auto-organizam em capítulos regionais e nacionais de acordo com as necessidades de seus contextos específicos. Alguns desses capítulos já começaram a funcionar, como na Índia, no Egito, no Quênia e em Portugal.
Singh reuniu-se com organizações da sociedade civil, líderes políticos, movimentos sociais, empresários e ativistas em São Paulo para iniciar um projeto brasileiro da comissão.
Depois de me convidar para presidir a comissão em Portugal e na Espanha no ano passado, tive a honra de acompanhá-lo em sua jornada ao Brasil. Em minha comunidade em Tamera, um centro internacional de pesquisa sobre a paz na região do Alentejo, em Portugal, trabalhamos com a conservação da água nos últimos 15 anos e agora estamos nos preparando para ampliar essa abordagem em nossa região para combater a seca severa e extrema.
No Fórum Virada Sustentável, o maior festival de sustentabilidade do Brasil, Singh compartilhou um painel com a ministra do meio ambiente do Brasil e veterana defensora das florestas, Marina Silva, que expressou sua admiração pelo trabalho dele. Ela disse que sentiu uma “conexão profunda” quando ouviu Singh falar, acrescentando que “embora não tenhamos nos encontrado antes, sinto como se nos conhecêssemos há muito tempo”.
Marina reconhece a importância de ecossistemas saudáveis para manter os ciclos da água e a estabilidade climática. Falando com Singh, ela disse: “Você é apaixonado pela água, assim como eu sou apaixonada pelas florestas. Acredito que a floresta e a água são inseparáveis”. Referindo-se aos “rios voadores” sobre a Amazônia, ela acrescentou: “Sem floresta, não há água; sem água, não há floresta”.
Por ser uma pessoa fortemente engajada na proteção da floresta desde sua juventude, Marina está dando tudo de si para evitar o que ela chama de “ponto sem retorno” na Amazônia. Seu ministério está liderando a árdua batalha do novo governo para alcançar o “desmatamento zero” até 2030 e defender o desenvolvimento sustentável.
Os cientistas alertam que, a menos que o desmatamento pare nos próximos anos, a conversão da floresta amazônica e de outros biomas em savana seca logo será irreversível. O colapso da Amazônia, segundo eles, perturbaria os ciclos da água da Patagônia ao Canadá e intensificaria o aquecimento global.
Até o momento, os primeiros resultados do trabalho da Marina chocaram positivamente tanto cientistas quanto ativistas; os números do desmatamento despencaram em apenas alguns meses de seu mandato. Mas a missão de preservar a Amazônia continua sendo extremamente desafiadora, já que há toda uma coalizão de poderosos interesses econômicos – especialmente na extração ilegal de madeira, na mineração e a agrícultura predatória, juntamente com fornecedores de armas e missionários – está investida na aceleração do desmatamento.
Os povos indígenas do Brasil, que se entrelaçam com os ecossistemas locais há séculos e milênios, são os primeiros e principais guardiões das florestas brasileiras, mas também os que mais sofreram com a invasão das indústrias extrativistas. Eles compõem uma enorme diversidade cultural, com mais de 300 nações indígenas e 274 idiomas falados ainda hoje. Embora a violência colonial continue implacável, os povos indígenas do Brasil, especialmente as mulheres, estão liderando uma verdadeira transformação cultural e espiritual da política brasileira – no governo Lula e na sociedade em geral.
Enquanto estávamos lá, testemunhamos uma vitória histórica para a soberania indígena: O STF declarou inconstitucional um projeto de lei que a maioria de direita no Congresso havia aprovado. O “Marco Temporal”, se aprovado, despojaria muitas comunidades indígenas de suas terras e as abriria para mineração, desmatamento e grandes projetos de infraestrutura.
O poder desse crescente movimento pelos direitos indígenas é muito mais do que apenas inteligência estratégica. Ele está enraizado em outras formas de ser, conhecer e se relacionar. A deputada federal indígena Célia Xakriabá fala de “reflorestar a política”, um projeto de transformação social de longo alcance baseado na recuperação da identidade indígena e nas práticas de honrar nossa interdependência com todos os seres vivos.
O diálogo entre Marina Silva e Rajendra Singh refletiu esse senso de reverência pela Terra. Em palavras diferentes, ambos sugeriram a espiritualidade que impulsiona seu enorme engajamento ecológico, que foi o amor e a vontade de viver que permitiram que eles tornassem possível o que parecia impossível repetidas vezes. Eles também compartilham o entendimento de que qualquer mudança ecológica, para ser sustentável, precisa estar ancorada na cultura.
Além dos protetores indígenas da água e da floresta, essa mudança de cultura no Brasil é liderada por iniciativas poderosas de baixo para cima. Durante nossa estada, visitamos e criamos laços com algumas delas. O Instituto de Água e Saneamento (IAS) está fazendo campanha para que a água potável e o saneamento sejam garantidos como direitos humanos. Em Itu, um município a uma hora de São Paulo que enfrentava problemas de estresse hídrico, a SOS Mata Atlântica demonstrou, em apenas 15 anos, como uma área dessecada de tamanho médio pode reter e armazenar água por meio da regeneração da Mata Atlântica nativa. Os movimentos dos trabalhadores sem terra e sem teto mostraram como as pessoas privadas de direitos pelo Estado e pelo capitalismo podem defender seus direitos à subsistência e à dignidade organizando-se em comunidades descentralizadas e regenerativas.
A partir da convergência dessas e de outras iniciativas, um grupo de ativistas interessados se reunirá nos próximos meses para organizar a “Comissão Mundial dos Povos sobre Secas e Enchentes” no Brasil. Alan Dubner (Fundação Rede Brasil Sustentável) e Claudio Miranda (Instituto Favela da Paz) estão coordenando essa rede ainda em formação, à medida que ela se constitui e desenvolve um plano de ação.
Embora essa transformação continue a se mostrar complexa e desafiadora no Brasil, o país é, sem dúvida, uma potência de mudança social e ecológica. A adoção de uma gestão de água descentralizada e comunitária por meio da cooperação sul-sul e da organização local pode ajudar o país não apenas a evitar o colapso dos ecossistemas, mas sim a liderar a inevitável transformação em direção a uma civilização ecológica.