CURAR O NOSSO TRAUMA COLECTIVO

Por trás da Crise Actual Esconde-se a Crise Central das Relações Humanas

Por trás dos massacres e atrocidades que vemos acontecer no mundo, esconde-se um padrão colectivo da alma que parece ser consistente em todos os continentes. Este é um padrão de medo. Na base da nossa civilização encontra-se um campo morfogenético de medo.

As horrendas manifestações de crueldade que surgem a partir deste campo são, na verdade, tentativas do ser humano eliminar os seus medos internos. Se queremos gerar paz na Terra, de forma duradoura, precisamos de transformar este padrão do medo num padrão básico de confiança. Isto é fácil de dizer, mas o medo encontra-se profundamente enraizado nas nossas células. Ele tornou-se um componente rígido da nossa constituição genética e psicológica – operando como um reflexo inconsciente. “O medo tem que desaparecer da Terra”, disse Mikhail Gorbachev. Não sei se ele entendia a profundidade desta afirmação, contudo ele mencionou o objectivo mais intenso e abrangente que hoje enfrentamos se queremos dar à evolução uma direcção humanista. O objectivo do trabalho de cura é permitir uma vida liberta do medo. O campo morfogenético do medo precisa de ser totalmente substituído pelo campo morfogenético da confiança.

O medo é uma consequência do último milénio. Walter Schubart, no seu livro “Eros and Religion” [“Religião e Eros”], escreve que existe um medo original na base de todo o sofrimento psicológico – o medo da separação. É o medo da separação que nos impele para os actos mais insanos. A separação do nosso lar, da nossa família, parceiro amoroso, grupo – não reside aí algo comum a todos estes medos, o medo primordial da separação? É difícil definir em palavras as camadas mais profundas e primárias da alma. Geração após geração, o ser humano tem sido repetidamente separado daquilo que a sua natureza original mais ama, aquilo que ama como uma criança, simplesmente porque é um ser humano, um ser vivo, sensual, que respira. Afastámo-nos da unidade e não encontramos o caminho de volta. Vivemos “em exílio”, como diz Friedrich Weinreb. A cura significa, assim, a reconexão da humanidade com o seu verdadeiro lar. Esta é a direcção entelequial da nossa evolução actual – a reintegração do mundo humano no seu lar original, na vida, no amor, dentro dos preceitos da matriz sagrada.

Do Medo para a Paz

O medo não é um problema privado – ele é a consequência psicológica de uma civilização falhada. Ele nasceu das crueldades colectivas da humanidade. A tarefa do trabalho de paz global inclui a dissolução do trauma colectivo acumulado no subconsciente colectivo da humanidade, durante milhares de anos de guerra e expulsões, deslealdade e traição.

Teremos consciência que toda a nossa cultura, todos os actuais estados e nações tiveram a sua origem em guerras? Todos os estados presentemente existentes são terras conquistadas, outrora pertencentes a povos indígenas – pessoas leais, parceiros amorosos, crianças que brincavam. Os Estados Unidos da América precisaram de erradicar tribos nativas e escravizar milhões de africanos, de forma a serem capazes de construir a sua nação. Obviamente, estas não são boas condições para desenvolver uma civilização humana. A economia dos países ocidentais é alimentada, entre outras coisas, pela indústria do armamento e pelo comércio de armas. É a este ponto que se banalizou a guerra – e quão impensadamente nos habituámos a ela! A guerra tornou-se uma componente estrutural da nossa sociedade. Vivemos numa “sociedade de guerra”, na qual a paz é economicamente inviável. Se as nossas culturas ocidentais decidissem abandonar a economia da guerra, milhões de pessoas perderiam os seus empregos. Todas elas poderiam colaborar para estabelecer uma nova economia baseada na paz.

A nossa sociedade é dominada por um profundo idiotismo, uma verdadeira doença da mente e do espírito. No grande plano da vida, não faz sentido que as pessoas disparem deliberadamente umas contra as outras – tal não é coerente com o código de um mundo humano. A guerra é o resultado de uma aberração inconcebível. Quando se proclama que a guerra “sempre existiu”, respondemos que é tempo de acabar com esta insanidade histórica. A partir de agora, a guerra não pode ter lugar na cultura humana, tal como o ciúme não tem lugar no amor. Precisámos realmente de milhares de anos para descobrir esta verdade simples? Será incompreensível para os nosso descendentes que as pessoas se tenham matado por ciúmes. Terão ainda mais dificuldades em compreender como as pessoas podem ter disparado umas sobre as outras e infligido crueldades ainda piores. Não vale a pena fazer referência à violência no mundo animal, nem citar Heraclitus, “A guerra é o pai de todas as coisas”. Tal raciocínio assenta na assumpção de que o mundo deveria permanecer “como sempre foi”. Aqueles que o advogam não conseguem perceber o poder do Criador contido na humanidade e o seu potencial transfigurador. Não somos certamente um produto do nosso passado, nem somos determinados por leis naturais. Somos os criadores das nossas vidas. Temos a liberdade e a missão de construir um mundo melhor, que funcionará se corresponder às regras da matriz sagrada. Quero aqui referir uma citação de Satprem, um estudante do filósofo indiano Sri Aurobindo e da Mãe de Auroville. Ele escreve,

“Depois de irromper através de todas essas camadas evolutivas, emergimos de súbito, nas profundezas do corpo, para algo sobre o qual as velhas leis do mundo não já têm poder. E apercebemos-nos que o seu poder não era mais que uma enorme sugestão colectiva – e um velho hábito. Nada mais que um hábito! Não existem “leis” – existem apenas hábitos fossilizados. E todo o processo consiste em romper esses hábitos. (…) Mas esse estado tem que alcançar um ponto em que é experienciado espontaneamente e com naturalidade pelo corpo, o que significa libertá-lo de todos os condicionamentos. Depois emergimos em algo fantástico. Mas realmente fantástico! Embora eu suponha que o primeiro voo de um pássaro pelo ar tenha sido também fantástico. No entanto, num determinado momento, um velho réptil levantou voo e tornou-se pássaro.”

Não há leis pré-fabricadas nem leis físicas finais que governam os nossos corpos.

Existem apenas hábitos comportamentais enraizados, e uma liberdade dentro de nós que nos permite elevar-nos a uma forma de vida superior.

Quando descortinamos a vilania contida por trás da palavra “guerra”, vemos as imagens de horror armazenadas na memória herdada pela humanidade, imagens de homicídios em massa, mutilações, abandono e fome. Estas imagens foram repetidas, geração após geração, durante centenas de milhares de anos. Elas foram profundamente gravadas na memória genética da humanidade. A alma humana colectiva carrega o fardo deste pesadelo.

A Consequência de um Trauma Global

Existe uma bomba traumática enterrada em todos nós – que pode explodir a qualquer momento. “Todos têm o seu Vietname”, disse Claude AnShin Thomas, um veterano de guerra e monge Budista, que percorreu o mundo trabalhando para a paz. O que acontece actualmente nas manifestações de violência – na luta entre gangues e nas prisões juvenis, nas escolas, bairros, estádios de futebol e câmaras de tortura – é a consequência de um trauma global que irá repetir-se continuamente até que as suas causas não sejam dissolvidas pela raiz, de uma vez por todas.

Tendo originado de uma longa história de guerra, estas imagens horrendas formam o núcleo traumático da humanidade. Este núcleo traumático exerce uma tirania subconsciente sobre os alicerces da alma, disparando imagens de medo para o nosso organismo, traindo o amor, ridicularizando a fé, produzindo padrões de interpretação negativa sobre todos os acontecimentos e lutando contra quem pensa de forma diferente. Produz noções incorrectas sobre doença e cura – conduz os nossos processos psicossomáticos, as nossas percepções e reflexos, as nossas hormonas, funções nervosas e contracções musculares. Estamos subconscientemente sintonizados com a matriz de informação do trauma. Vivemos subconscientemente num cenário de perigo omnipresente, do qual precisamos de nos defender. O mundo apresenta-se como um júri anónimo perante o qual temos de nos proteger e justificar. Existe um medo colectivo de sermos julgados. Por trás de todas as disfunções psicológicas, todas as formas de neurose e psicopatia, esconde-se o grande trauma colectivo, uma doença que afecta a raça humana como um todo.

Quero citar Eckart Tolle. Ele refere-se ao trauma colectivo como um “corpo de dor”. Ele escreve,

“Este campo energético de velhas emoções mas que estão ainda bastante presentes, e que vive em quase todos os seres humanos, é o corpo de dor. O corpo de dor, contudo, não é apenas de natureza individual. Ele engloba também a dor sofrida por incontáveis humanos através da história da humanidade, que é uma história contínua de guerra tribal, de escravatura, pilhagem, violação, tortura e outras formas de violência. Esta dor continua viva na psique colectiva da humanidade e aumenta de dia para dia, como se verifica ao ver o noticiário esta noite ou ao observar o drama nas relações das pessoas.”

Habituámo-nos a notícias horrendas – que nos envolveram em nevoeiro. No momento de despertar, somos atingidos por um estranho pensamento: poderá tudo isto ser verdade? Participámos, de facto, nisto? E como saímos daqui? É quase impossível descortinar os mecanismos inerentes à sociedade existente e continuar a percorrer o velho caminho. Teremos de a abandonar? Se sim, como? Para onde? De forma a podermos conseguir abandoná-la, temos de ter uma alternativa para onde ir. Essa alternativa ainda não existe num formato final, mas surgirá mediante a criação de centros de transformação cultural, berços de uma nova Terra. A colaboração de centenas, milhares, milhões é agora necessária para a construção de novas estruturas, novos locais de trabalho e novas profissões necessárias à criação de Terra Nova. Todos os que tiverem ainda uma função significativa na sociedade existente podem fazer uso dela para estabelecer um rumo alinhado com Terra Nova. A revolução precisa não apenas de activistas radicais, mas também de mediadores entre o velho e novo mundo.

No despertar do grande trauma, surgem perturbações na comunicação interpessoal. Em quase todos os casos, ocorrem de acordo com um padrão semelhante de crenças subconscientes que perpetuam constantemente a guerra subliminar, latente entre as pessoas.

Algumas Crenças Subconscientes

Quero referir três exemplos:

  1. Muitas pessoas vivem na situação subconscientemente imaginada de não serem aceites pelos outros. Consequentemente, eles interpretam as reacções daqueles com quem falam a partir deste ponto de vista. Um elogio pode assim ser interpretado como uma ironia, um olhar pensativo como um julgamento, uma questão como uma agressão, uma boa sugestão como uma crítica e por aí fora… É assim que surge uma grave interferência nos nossos contactos – isto é raramente compreendido e pode levar-nos até ao ódio. Em muitos grupos de discussão política testemunhamos conversas que se tornam cada vez mais longas e sem sentido, pois elas são impulsionadas pela angústia de crenças subconscientes que nada têm a ver com a questão objectiva que está a ser debatida. Tais padrões de interpretação neuróticos tornam-se especialmente terríveis nas relações amorosas. Assim que dois amantes tenham chegado até ao novelo de tais desentendimentos, raramente existe uma saída, pois qualquer possibilidade racional de correcção está inacessível. Quantas relações falham devido às feridas que os parceiros infligem uns aos outros dentro do padrão de interpretação da não aceitação? E assim que em discordância um com o outro, a assumpção da não-aceitação encontra a sua confirmação óbvia. Este é um forte exemplo de uma profecia auto-cumprida. O neurótico tem depois todas as razões para ver a sua ilusão como realidade. Ele defende-se contra tudo o que o pudesse curar. Este é, de facto, um problema fundamental da nossa sociedade – uma defesa profundamente enraizada ao nível psicológico, contra tudo o que pudesse ter um impacto de cura.
  2. Um segundo exemplo, intimamente ligado ao primeiro, é o medo da separação no amor. Como resultado do grande trauma, muitas pessoas vivem convictas que não são amadas. Quando encontram um parceiro amoroso, elas continuam firmemente descrentes face ao seu amor e vivem, por isso, num estado latente de desconfiança e medo de o perder. Por isso, fazem tudo para prevenir a separação, que é exactamente a forma como acabam por provocar o perigo real de separação. Pois as estratégias encenadas pelo medo da separação – apego, choradeira, queixumes, chantagem, etc… – não são favoráveis ao amor. Enquanto terapeuta, testemunhei este pernicioso padrão de profecia auto-cumprida, presente em quase todas as relações amorosas. Não é fácil acreditar no amor, ao viver numa sociedade cujas leis forçam a maioria das pessoas a mentir ao seu parceiro. A resposta terapêutica definitiva consiste no desenvolvimento de uma comunidade onde ninguém tenha que mentir mais.
  3. Um estonteante exemplo do impacto dos paradigmas subconscientes é dado pela história da Primeira Guerra Mundial. Todas as nações que iniciaram a guerra – Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia e França – viviam na expectativa de um ataque iminente por parte de uma das outras – um vestígio típico do grande trauma histórico. Os historiadores concordam que não existia uma razão racional para a guerra. Tratou-se de um teatro psicológico sem comparação. Poderia ter-se apresentado num palco com humor, caso não tivessem morrido cerca de 15 milhões de pessoas. Este é um exemplo clássico do contexto psicopatológico da política global, enquanto esta for conduzida por pessoas que ainda não resolveram o seu trauma subconsciente.

Sou formado em psicanálise e de facto nunca abandonei esta profissão, tendo-a aprofundado e aperfeiçoado continuamente ao longo de quase 40 anos de trabalho com grupos. Para conseguir compreender o que acontece entre seres humanos, precisei de ganhar conhecimento sobre as diversas camadas da alma: as camadas do consciente e do inconsciente, abertas e oprimidas, biográficas e cármicas. Conheci mais de uma centena de grupos e projectos e observei como os mesmos padrões básicos de neurose se repetem em todo a parte, de formas semelhantes. Eu próprio tenho sido o meu melhor objecto de pesquisa – pouco a pouco, os processos psicológicos, as reacções habituais e disfarces, as imagens e impulsos reprimidos, que incluem a totalidade da guerra subliminar da actualidade, revelaram-se. A guerra estava também latente em mim. Contudo, houve um ponto interior a partir do qual eu pude reconhecer e corrigir as minhas neuroses. Chamamos-lhe o “Ponto de Deus” no ser humano. É o ponto interior de reflexão, a partir do qual recebemos feedback directo que nos permite permanecer no caminho da entelequia. Assumo que ele exista em todas as pessoas. Está, então, implícito que cada pessoa seria capaz de reconhecer a sua incapacidade mental e viver uma vida responsável.

Trabalho Global de Cura

Uma condição muito importante para o sucesso da cura global é a dissolução do núcleo traumático. Com esta constatação, abandonamos todos os conceitos históricos revolucionários. Precisamos de encontrar formas de viver que nos permitam superar esta herança terrível. A criação de tais formas de vida, é o tema essencial da actualidade. Compreendemos de imediato que o fenómeno aqui abordado não pode ser solucionado mediante uma revolução política ou através de terapia individual. Precisamos de soluções colectivas e da cura das fundações psicológicas.

Ao longo dos muitos anos do nosso trabalho de cura, sabemos agora como é difícil a dissolução das consequências psicológicas deste trauma. Os grupos actualmente nas linhas da frente política e humana, precisam de um conhecimento abrangente sobre a vida e sobre os seus poderes de cura, se é que querem resistir ao conflito. Em cada acção, podemos activar os poderes de cura. O trabalho nos novos centros é, em grande parte e fundamentalmente, trabalho de consciência. Escolher continuamente o lado positivo é algo que requer treino colectivo. O velho campo da raiva e do medo tem que ser transformado, através de um esforço histórico, num campo de confiança e amor. Temos de o fazer com todas as nossas forças, em colaboração com todos os grupos e projectos de paz do mundo inteiro, até que a informação de paz seja firmemente absorvida pelo sistema genético do Homo sapiens.

Este é um excerto editado do livro: Terra Nova: Global Revolution and the Healing of Love [“Terra Nova: Revolução Global e a Cura do Amor”] por Dieter Duhm.

 

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