A QUESTÃO DA DEMOCRACIA

Democracia – existirão ideias bem fundamentadas sobre o significado desta palavra e sobre a possibilidade da sua realização? Aqueles que falam de “democracia” querem realmente uma democracia ou será que de facto querem algo bastante diferente? Muitas das pessoas que se tornaram seguidores de um guru vieram da esquerda política e do movimento alternativo, onde era natural falar de democracia. Os dois movimentos que causaram um alvoroço na Alemanha durante os últimos anos – AAO (um centro austríaco de terapia e cultura com sexualidade livre) e Poona (um ashram na Índia, fundado pelo controverso professor espiritual, Bhagwan Shreee Rajneesh, ou Osho, como foi mais tarde conhecido) – têm no seu centro um líder eminentemente carismático. Se observarmos os movimentos rumo a formas de vida alternativas durante os últimos 200 anos, incluindo as grandes comunas americanas, pode-se esboçar uma conclusão provocativa: até agora, as únicas comunidades que persistiram por um longo período de tempo, foram as de tipo carismático e não de tipo democrático.

Os ideais políticos falham, como sempre, face à realidade emocional. A relação entre pai e filho não foi ultrapassada em lugar algum. Os crescidos não cresceram. As pessoas foram sensibilizadas para as condições sociais e políticas da opressão – elas defendem-se das estruturas de dominação e autoritarismo, acreditando, por isso, que querem a democracia. Mas, na verdade (na realidade dos processos da sua alma), a maioria das pessoas defende-se da autoridade pelas mesmas razões que glorifica o seu líder quando encontra o líder certo: estão fixadas emocionalmente à autoridade, tanto no medo e no ódio, bem como no amor. Deveríamos ponderar quanto do anseio infantil por amor, quanta inclinação para a adoração e o culto, nunca puderam ser expressados durante a infância por os adultos não servirem para tal – e que enorme quantidade de anseios está ainda latente em cada um, aguardando o sinal de chamada!

E depois encontramos alguém que, de súbito, dá luz verde a todos estes anseios, alguém que simboliza a grande figura positiva da mãe ou do pai, no qual a criança escondida no interior pode projectar todos os atributos positivos. Através deste processo, acontecem verdadeiras experiências de revivalismo e despertar. A força maior no ser humano, o amor, é despertada. A agitação libidinosa é tão poderosa que muda verdadeiramente uma vida. É preciso que o tenhamos experienciado nós mesmos – por exemplo, na forma como cinco mil sannyasins celebraram o aniversário de Bhagwan no Buddha Hall em Poona. Sim, era como um gigante jardim infantil, mas era um festim de amor, devoção e agradecimento, de uma maneira que um comum ocidental não consegue imaginar. Quando confrontados com erupções vulcânicas de força emocional e identidade tão íntimas e genuínas (!), toda a irritação intelectual tem de cessar. Isto é a vida. Isto é, pelo menos actualmente, a verdade das estruturas emocionais comuns que dão forma aos verdadeiros anseios da maioria dos humanos!

As palavras atraentes por um mundo melhor – democracia, igualdade, não-violência e justiça social – saem quase sempre de tempos de crise ou ressentimento, não de uma convicção positiva ponderada. É essa a razão mais profunda para o seu fracasso. Elas não tocam nas verdadeiras estruturas emocionais, problemas ou anseios que afectam as pessoas. Wilhelm Reich chamou à atenção para este dilema há cinquenta anos, no seu livro, “What is Class Consciousness?” [“O que é a Consciência de Classes?”]. Muito do que ele escreveu, continua a ser hoje verdade.

Tal como com a não-violência, a democracia não é uma questão nem de compromisso verbal nem de uma forma política exterior de um sistema. Trata-se sim de uma questão que pertencente, maioritariamente, ao estado emocional e à estrutura de motivações do ser humano. As necessidades libidinosas não realizadas permanecem ainda como um obstáculo à criação de uma sociedade livre e democrática. A estrutura emocional do ser humano actual não é democrática, nem autónoma, mas feudalística. Tal como em tempos idos, ansiamos pelo Pai, Deus e César – mas não os queremos na sua velha forma, queremos sim o seu equivalente psicológico. Enquanto não houver um libertador à vista, falhamos em reconhecer as nossas inclinações e, em vez disso, falamos de outra coisa, tal como democracia ou até anarquia. Mas assim que uma figura aparentemente paternal ou divina se torna visível, começamos a sentir-nos vivos e esquecemos tudo o que apregoámos no dia anterior. Vi, muitas vezes, intelectuais críticos, Marxistas, pensadores e individualistas chegarem à extremamente organizada e hierarquizada Friedrichshof na Áustria e abandonarem as suas resistências em muito pouco tempo – não por terem sido quebrados por lavagens cerebrais, como o descreveu um jornal sensacionalista – mas porque eles mesmos já não conseguiam acreditar nas suas próprias resistências. Os seus verdadeiros desejos tinham sido despertos.

Alguns leitores conseguem agora compreender-me quando disse, de forma bastante simples, que a nossa cultura actual, incluindo a contracultura, é uma pseudo-cultura. Ao nível verbal já quase ninguém tem credibilidade, pois as pessoas querem algo diferente daquilo que dizem querer. As pessoas estão sedentas, mas quase ninguém é capaz de articular o objecto da sua sede. As comunidades de AAO e Poona trouxeram a sede a céu aberto, e aquilo que elas nos ensinam deve ser levado a sério. Os slogans políticos da democracia, paz e justiça vão continuar a soar como hinos do Exército de Salvação quando comparados com a vida real, enquanto as nossas raízes psicológicas não forem estudadas profundamente, incluindo a dinâmica das nossas motivações subjacentes e do nosso núcleo emocional, e realizadas a partir dessa compreensão.

O verdadeiro humanismo precisa de democracia. Todas as estruturas guru, toda a adoração de líderes e todas as formas de organização comunitária de seres humanos que se baseiem na fixação emocional podem ser uma importante aprendizagem temporária para os envolvidos, mas elas não dão resposta à questão que enfrentamos. A questão é: qual a forma organizacional e qual a constituição interna que podemos criar para a coexistência humana, que possa ser aplicada na generalidade e, que a longo prazo, possibilite a existência de estruturas verdadeiramente humanas?

Um sentido de humanidade verdadeiramente responsável poderá apenas emergir depois das fixações serem superadas, e quando a democracia for psicologicamente possível. O desenvolvimento de uma democracia real será baseado na realidade em causa, por exemplo, no facto de que existe, em qualquer comunidade, uma espécie de hierarquia natural (que pode sempre transformar-se). Antes da comunidade dar a ela própria uma forma organizacional consciente, algum tipo de estrutura de grupo já se terá desenvolvido a partir da hierarquia das diferenças humanas percepcionadas. Estas diferenças são parte da variedade de um biótopo humano. Elas não devem ser suprimidas através de uma sobreposição de proclamações igualitárias, mas devem antes ser usadas para processos criativos de aprendizagem.

Uma democracia de base e de grupo, que seja uma reflexão da vida, não se baseia em estruturas igualitárias, mas na optimização de possibilidades para o desenvolvimento individual e crescimento da autonomia intelectual de todos os seus membros. Estas são fasquias elevadas. Elas requerem a percepção de três coisas na sociedade democrática do futuro:

Em primeiro lugar, a fixação entre crianças e pais – que até agora tem mantido as pessoas em constante dependência infantil das autoridades – deve ser superada através de novas formas sociais de criar as crianças e novas formas sociais de amor.

Em segundo lugar, toda a repressão emocional – que até agora impossibilitou o desenvolvimento emocional do ser humano desde a sua infância e desta forma o impediu de crescer – deve cessar através de um sistema social de amor livre, pesquisa livre e trabalho livre.

Em terceiro lugar, é necessário criar a maior transparência social possível, permitindo que o indivíduo, desde a sua infância, tenha uma visão geral do seu ambiente social, conhecendo a sua posição actual na comunidade e participando nas decisões actuais. A secção seguinte considera alguns princípios para alcançar essa transparência social.

A democracia não pode ser alcançada por decreto. Ela pode apenas emergir e crescer quando as condições emocionais, mentais e sociais necessárias estiverem presentes. À medida que ela cresce gradual e lentamente, a comunidade em que ela se desenvolve assumirá a forma de um círculo – um círculo em que cada elemento carrega um peso e um significado diferentes, mas onde cada um tem o seu lugar e a sua relação com o todo.

Este é um excerto editado do livro: ”Towards a New Culture” [“Rumo a Uma Nova Cultura”] por Dieter Duhm

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